tag:blogger.com,1999:blog-75860858696601837992024-02-07T03:00:17.113-08:00Heber SalesUnknownnoreply@blogger.comBlogger13125tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-47890644837709512642021-03-07T06:57:00.009-08:002021-03-07T08:05:27.981-08:00Os usos da verdade na políticaA coragem da verdade e da "fala franca" (<i>parresía</i>) foi o tema dos dois últimos cursos dados por Foucault no <i>Collège de France</i> entre 1982 e 1984. Alguns breves comentários a respeito podem iluminar, eu suponho, certas referências à verdade na política brasileira atual.<p>
No primeiro desses cursos, <i>O Governo de Si e dos Outros</i> (FOUCAULT, 2010), o filósofo francês analisa como, em vários textos da Grécia antiga, a palavra <i>parresía</i> passou por uma transformação, deixando de significar o mero direito de se dirigir livremente à assembleia de concidadãos para, nos discursos de Sócrates, se constituir em uma <i>parresía</i> filosófica.</p><p>
Qual era a diferença?</p><p>
Grosso modo, no primeiro caso, que Foucault chamou de <i>parresía</i> pericliana, a fala franca apela à retórica para, em uma acirrada disputa entre oradores e líderes, convencer a cidade a se unir sob uma só ideia.</p><p>
"[Na] situação conflitual em que pessoas pertencentes à elite ou que querem jogar o jogo agonístico se deparam com uma estrutura igualitária e democrática, a retórica é um discurso que [...] tem um só e único uso: trata-se de prevalecer" (FOUCAULT, 2010, p. 335).</p><p>
Perseguindo obsessivamente esse objetivo, a retórica torna-se então "indiferente ao justo e ao injusto, [...] é como puro jogo agonístico que a retórica se vê justificada" (FOUCAULT, 2010, p. 334).</p><p>
Na <i>parresía</i> filosófica, ao contrário, a fala franca não persegue a qualquer custo a vitória em uma disputa política, mas se apoia na coragem da verdade com vistas à benevolência.</p><p>
Trata-se de afirmar honestamente em que se crê, mesmo que isso implique em risco de vida, - como acabou sendo o caso do próprio Sócrates -, certificando-se de que a verdade está sendo dita em favor do outro.</p><p>
"O jogo já não é agonístico (de superioridade), portanto. É um jogo de prova a dois, por afinidade de natureza e de manifestação de autenticidade, da realidade-verdade da alma" (FOUCAULT, 2010, p. 336).</p><p>
Foucault insere assim a fala franca socrática no contexto e no esquema de uma dialética: chega-se à verdade não por força de um dogma ou de uma evidência objetiva, mas por meio de um diálogo que leva a um esclarecimento progressivo.</p><p>
<br />
<b>REFERÊNCIA</b></p><p>
FOUCAULT, Michel. <i>O governo de si e dos outros</i>. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
</p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p><p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-10741799565923788642020-12-06T05:10:00.002-08:002020-12-06T07:43:33.404-08:00O saber dos dados e a nova ciência da ordem<p></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi59PFH5EGC2zQdi3fO23FMw61mGBHB9hkFg9NxPIb4WIOyVapkdSjRqX1iMNa6-iKmS17VwT4In3z9ct8Ww9PhEN7OnfS_J-ddc3TAadEPRwnEQqFWzgLm0U6c4RjtB8wA-v_FSuFo6c0/s659/ea62025036538f1b66ff96e743d0ea69.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="659" data-original-width="530" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi59PFH5EGC2zQdi3fO23FMw61mGBHB9hkFg9NxPIb4WIOyVapkdSjRqX1iMNa6-iKmS17VwT4In3z9ct8Ww9PhEN7OnfS_J-ddc3TAadEPRwnEQqFWzgLm0U6c4RjtB8wA-v_FSuFo6c0/w321-h400/ea62025036538f1b66ff96e743d0ea69.jpg" width="321" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><br /></td></tr></tbody></table> <p></p><p>A ciência de dados tem se tornado uma disciplina dominante, sendo aplicada nas mais diversas áreas do conhecimento, inclusive nas ciência sociais e humanas.</p><p>Ela serve de base também para a inteligência artificial, que muitos veem como uma ameaça à hegemonia humana no trabalho, na gestão e do juízo.<br /></p><p>A onipresença da ciência de dados hoje faz dessa disciplina uma candidata a ciência universal. Podemos falar da datificação como uma nova <i>epistémê</i> ou, para usar termos mais populares, um novo paradigma científico dominante? <br /></p><p>De certo modo, ela parece-me comparável à <i>epistémê</i> clássica dos século XVII e XVIII, que, <a href="https://books.google.com.br/books?id=lGtUDwAAQBAJ&dq=AS+PALAVRAS+E+AS+COISAS+FOUCAULT&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwj908b0rbntAhWGIbkGHRATCfAQ6AEwAnoECAMQAg" target="_blank">segundo Foucault</a>, baseava-se em uma "ciência universal da ordem". <br /></p><p>A ciência da ordem era, como a ciência de dados é hoje, uma ciência da comparação. Na <i>epistémê</i> clássica, as coisas do mundo eram postas em série com base num jogo de identidades, diferenças e gradações. A linguagem era neutra, transparente, servindo apenas como um instrumento de representação da ordem dada pelo encadeamento do conhecimento humano.</p><p>O que ocorre na ciência de dados hoje é igualmente um jogo de comparação, baseado agora não em identidades e diferenças identificadas pelo homem, mas em correlações estatísticas calculadas pela máquina.</p><p>As coisas não têm história, não são, como supunha a <i>epistémê</i> moderna, que, no século XIX, veio a suceder a <i>epistémê</i> clássica, partes inextrincáveis de um processo - elas são elementos em uma função matemática apenas, elementos nomeados por palavras transparentes.</p><p>Assim, ocorre situações em que, por exemplo, pessoas LGBTQI+ são <a href="https://www.wired.com/story/drag-queens-vs-far-right-toxic-tweets/" target="_blank">censuradas por um robô do Twitter</a> por escreverem a palavra <i>fag</i> em um post. <br /></p><p>Onde o robô se perdeu na tradução? Para a máquina, a palavra <i>fag</i> é típica de discursos tóxicos, ofensivos, quando, para essa comunidade, geralmente é um termo irônico e brincalhão. Em seu aprendizado de máquina, descobriu-se depois, o robô foi alimentado por uma amostra enviesada de dados linguísticos, onde as falas da comunidade LGBTQI+ estavam sub-representadas. </p><p>Se a minha hipótese estiver correta, a ciência de dados não pode ser considerada como parte da <i>epistémê</i> moderna conforme descrita por Foucault. Ela seria uma retomada da <i>epistémê</i> clássica em outros termos - não mais os termos da <i>máthêsis</i>, a ciência universal da ordem, mas os da estatística e da probabilidade.<br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-81428022276700702382020-11-17T04:19:00.002-08:002020-11-17T04:19:41.417-08:00O mito da neutralidade científica - mais uma vez<p>O mito da neutralidade científica é renovado pela enésima vez na <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/henrique-gomes/2020/11/nao-podemos-ter-uma-ciencia-para-conservadores-e-outra-para-liberais.shtml" target="_blank">coluna do Henrique Gomes</a>, que não deixa de ser brilhante em vários aspectos.</p><p>Ao invés de "suprimir o seu lado pessoal", porém, parece-me mais válido e produtivo "reconhecer o seu lado pessoal" na pesquisa. É a melhor vacina contra vieses, penso eu, e, ao mesmo tempo, fortalece o compromisso do cientista com os valores que passarem ilesos por essa autocrítica.</p><p>Uma ciência isenta de valores, eu duvido que exista - nem me parece desejável se queremos uma ciência que seja também ética, e não apenas verdadeira.</p><p> </p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/10/o-lugar-de-fala-de-bolsonaro.html" target="_blank">O lugar de fala de Bolsonaro contra a ciência</a> <br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-41163684616992531672020-11-14T02:06:00.011-08:002020-11-15T14:03:26.202-08:00Tornar-se outro<p style="margin-left: 240px; text-align: left;">“Que fazer para ser outra pessoa? Impossível. Seria preciso já não sermos ninguém, esquecermo-nos por alguém, uma vez pelo menos.” </p><p style="margin-left: 600px; text-align: left;">Albert Camus em <i>A queda</i></p><p></p><p></p><p> </p><p>Cada um de nós, a todo momento, quer se tornar um pouco outro. Talvez seja impossível haver alguém que, agora mesmo, não deseje mudar alguma coisa em si - geralmente um bocado de coisa. </p><p>A própria natureza realiza a transformação, muitas vezes à nossa revelia. A partir de uma certa idade, é inevitável envelhecer a contragosto. </p><p>Antes, muito antes disso, as crianças costumam reclamar porque não são grandes o suficiente para fazerem tudo o que querem. Iludem-se, sabemos bem, vão continuar querendo e não podendo o resto da vida. E não podendo até mais. Porém, tudo o que elas percebem agora é que os adultos proíbem-nas de fazer as coisas que eles próprios fazem, e se gabam de fazer. </p><p>Uma vez ou outra, a gente encontra um desses guris que não desejam crescer. Parece satisfeito em ser o que é. </p><p>Muito mais comum é o adulto que gostaria de ser criança outra vez, o que acaba acontecendo quando ele envelhece o bastante para isso. Então, se conserva um pouco de juízo ainda, protesta contra essa infância que não pediu.<br /></p><p>Assim é a nossa causa contra o tempo - interminável. Queremos apressá-lo, queremos retardá-lo, queremos atrasá-lo: queremos que seja outro.</p><p> </p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/09/o-sujeito-e-historia.html" target="_blank">O sujeito e a história</a><br /></p><p></p><p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-73014227823554993302020-11-07T11:56:00.005-08:002020-11-08T04:52:28.602-08:00A ordem do mundo e a baderna da linguagem<p>Segundo uma certa tradição, que tem a sua versão bíblica e, paralelamente, a sua versão científica, usamos a linguagem para lidar com o caos e organizar o mundo.</p><p>De algum tempo para cá, comecei a me perguntar se o que ocorre não é exatamente o contrário: o mundo está em ordem; a linguagem é que não está - e que é pelo abuso dela que vamos transformando o mundo numa tremenda confusão.<br /></p><p>Talvez Foucault estivesse se referindo a essa baderna quando escreveu sobre <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/11/a-ordem-da-balburdia-nas-midias-sociais.html" target="_blank">os poderes e os perigos do discurso</a>, esmiuçando então os procedimentos que usamos para por em ordem a nossa própria Torre de Babel.</p><p>Nós recorremos às palavras para organizar a realidade a nossa volta. Temos uma certa preferência por aquelas que, aos pares, se opõe com clareza uma à outra conforme certos esquemas narrativos. Foi o que nos ensinaram os estruturalistas, desde Saussure, o linguista, à Greimas, o semioticista.</p><p>A luz está para as trevas, diriam, assim como: o dia está para a noite; o bem está para o mal; e Deus está para o Diabo. Negar a luz é meio caminho andado até as trevas; e, perdoe-me a rima toante, vice-versa. <br /></p><p>Como se vê, a ideia da polarização tem uma uma longa e respeitável história científica, que se desenrola desde o século XIX; não surgiu em nossa época de guerras ideológicas nas redes portanto. Como literatura, é ainda mais antiga. A Bíblia está aí para prová-la.<br /></p><p>Recorrer à linguagem para organizar o mundo é, todavia, um projeto arriscado. O sentido das palavras costuma ser fugidio, variando indefinidamente de acordo com os inúmeros contextos em que as usamos, tanto os mais imediatos quanto os mais distantes, diria Bakhtin.<br /></p><p>E aí pode estar a origem de toda confusão em que nos metemos quando nos tornamos palavrosos. Não é raro nos perdermos na tradução, seja em conversas com um estrangeiro, seja num papo com o vizinho.</p><p>O gringo talvez não entenda como, diante de um lance bisonho, o narrador de um jogo de futebol possa usar a palavra bonito, quando devia falar feio - "muito bonito, isso!". </p><p>O meu vizinho sumamente cristão, se um dia ler este texto, talvez me descubra ateu porque incluí a Bíblia no cânone literário, apesar de eu rezar a Oração de Jesus algumas vezes por dia, sempre para mim mesmo apenas, em silêncio.</p><p>Se não fosse por tantas confusões assim, desconfio, o mundo estaria em perfeita ordem. Quem faz uma grande baderna é a linguagem.</p><p> </p><p>Notas:</p><p>1) Para Bakhtin, a baderna da linguagem é um dado positivo e produtivo, pois, graças à diversidade de linguagens sociais que a constituem, uma língua se torna mais rica;</p><p>2) A propósito, recomendo a leitura do seu livro <i>Os Gêneros do Discurso</i> para quem deseja conhecer melhor as suas ideias sobre polifonia e dialogismo;</p><p>3) Do Foucault, o bom e velho <i>A Ordem do Discurso</i> é a melhor introdução sobre como, no Ocidente moderno, lidamos com os poderes e perigos do discurso. </p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-56308264799392162782020-11-06T15:10:00.002-08:002020-11-07T11:57:27.369-08:00A ordem da balbúrdia nas mídias sociais<p>O que dizemos tem consequências. O cuidado com que geralmente escolhemos as palavras é uma evidência disso. Nenhum enunciado deixa de receber a sua recompensa ou a sua punição, por irrisórias que sejam, sabemos disso muito bem. "Cuidado com o que você fala" é o nosso décimo primeiro mandamento.</p><p>Devido aos seus poderes e perigos, o discurso têm sido regulado de várias maneiras ao longo da história. Na nossa sociedade, por volta de 1970, alguns procedimentos de controle dos discursos pareciam patentes para Michel Foucault. Ele procurou então fazer um inventário deles no livro <i>A Ordem do Discurso</i>.</p><p>Gosto de especular como essas instâncias de controle estariam funcionando hoje, momento em que assistimos a uma proliferação aparentemente incontrolável dos discursos nas mídias sociais.</p><p>Para ser mais exato, esse processo teria atingido o seu ápice entre 2016 e 2018, período em que uma série de presidentes se elegeram em vários países graças ao modo como produziram e espalharam <i>fake news</i> e discursos de ódio nas mídias sociais, utilizando técnicas de manipulação baseadas no acesso e no uso não autorizados dos dados pessoais dos usuários dessas plataformas - é o que alegam os adversários dos presidentes incorrigíveis, alertando-nos para o modo como o <i>modus operandi</i> deles arruína a democracia e a civilização. Do alto de sua arrogância e da sua prepotência, líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro comandam brigadas digitais que assediam, caluniam e intimidam os oponentes e os traidores da causa, argumentam.<br /></p><p>A guerra de narrativas entre os dois lados produz uma tremenda balbúrdia, que, no entanto, não surge nem se expande livremente se Foucault estiver certo. E não é porque haja desde 2016 um imenso esforço institucional para blindar a internet contra a mentira, a violência e a invasão de privacidade. A enxurrada diária de enunciados político-ideológicos nas redes sociais vem sendo organizada desde muito antes de 2016 pelo que o filósofo francês chamou de doutrinas. </p><p>Enquanto procedimentos de controle dos discursos, como operam as doutrinas? </p><p>Um grupo de indivíduos compartilha um certo conjunto de discursos que lhes serve de sinal de pertença. Se, muitas vezes, há mera pregação para convertidos, o que caracteriza uma doutrina é a sua natureza propagandística: a doutrina expande-se indefinidamente, convertendo infiéis, indecisos e indiferentes.</p><p>As figuras que uso aqui são as de um tema religioso, porém as doutrinas prosperam nas mais diversas esferas da nossa vida social. Há doutrinas e doutrinação no esporte, na arte, na ciência e, evidentemente, na política.</p><p>O indivíduo doutrinado sofre, como falante, uma dupla sujeição: ele é interrogado "através e a partir do enunciado" que enuncia, o qual, por sua vez, é avaliado enquanto "manifestação de uma pertença prévia". No âmbito das doutrinas - recorro mais uma vez a um símile religioso -, a enunciação equivale portanto a uma profissão de fé. </p><p><br /></p><p>Notas:</p><p>1) As citações diretas são do livro <i>A Ordem do Discurso</i>, de Michel Foucault, e podem ser encontradas nas páginas 42 e 43 da 5ª edição da Loyola, de 1999.</p><p>2) A análise de Wendy Brown sobre o <a href="https://noticias.uol.com.br/colunas/observatorio-das-eleicoes/2020/11/06/wendy-brown-o-eleitorado-americano-e-o-suporte-a-trump.htm" target="_blank">suporte a Trump nas eleições de 2020</a> descreve claramente uma doutrina.</p><p>3) A doutrina regula a proliferação dos discursos contra o Trump também, não se engane.<br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-63912567911385749792020-11-05T06:37:00.003-08:002020-11-15T03:48:37.738-08:00O sujeito da linguagem<p>Por que, dentre todos os enunciados que uma língua nos permite produzir em um certo momento, apenas um é de fato enunciado? O que produz esse acontecimento singular? </p><p>Essa questão, debatida por Foucault em livros como <i>A Arqueologia do Saber</i> e <i>A Ordem do Discurso</i>, é também central para mim aqui. Retomo-a sempre, seja como um norte dá algum rumo para os meus estudos, seja como um quadro em que organizo as figuras que coloco em cena nos meus textos. </p><p>O filósofo francês entende esse acontecimento do <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/09/o-sujeito-e-historia.html" target="_blank">enunciado enunciado como um produto da história</a>, parte de uma formação discursiva, governado por procedimentos de controle dos discursos.</p><p>No que se refere à criação de enunciados, a liberdade do falante seria bastante relativa portanto. Até mesmo a produção de verdades pela ciência dependeria menos de um esclarecimento racional do que de um saber historicamente constituído, isto é, de um conjunto de valores, crenças e premissas que são da dimensão do social-cultural-político.</p><p>Talvez quanto a este ponto, Bakhtin e os seus colegas do círculo nos lembrassem que todo enunciado, seja ele de qual esfera for - jurídica, científica, literária, etc. -, não apenas reflete a realidade, como também a refrata, por ser a linguagem inseparável da ideologia. Conforme argumenta o filósofo russo em <i>O Freudismo</i>, o nosso próprio pensamento é inseparável da linguagem. Assim, qualquer arrazoar seria ideológico. <br /></p><p>Tanto em Bakhtin como em Foucault, descobrimos então um sujeito que não somente usa a linguagem como é constituído por ela.</p><p>Para aqueles que acham angustiante a ideia de que não temos nem a liberdade de pensamento nem a liberdade de expressão que supomos ter, talvez console lembrar que a mera tomada de consciência da nossa sujeição já é um certo modo de ser livre e de <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/11/tornar-se-outro.html" target="_blank">se tornar outro</a>. </p><p>Mas essa não é uma tese minha; é de Foucault.<br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-27711941836965811122020-10-19T03:43:00.010-07:002020-11-17T04:22:05.818-08:00O lugar de fala de Bolsonaro contra a ciência<p>Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, pode cometer os piores pecados e, ainda assim, haverá párocos saindo em sua defesa. </p><p>O que está em jogo aí não é a moralidade e a salvação das almas, mas dois regimes de <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/10/zen-e-verdade-em-foucault.html" target="_blank">verdade</a> antagônicos. </p><p>Em Bolsonaro, há um retorno a um regime que vem de longe e nunca deixou de existir, mesmo que, na maior parte do nosso tempo, tenha subsistido no subterrâneo, nos grotões e nas capelas. </p><p>Que regime é esse? É aquele que define como discurso verdadeiro o discurso que é "pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido", diria Foucault: não importa tanto o é que dito, mas quem o diz. É o regime em que se encontra Trump também, como sugere Luiz Felipe Pondé ao classificar o presidente norte-americano como um <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2020/11/trump-e-pos-moderno-enquanto-biden-e-o-verdadeiro-conservador.shtml" target="_blank">político pós-moderno</a>.<br /></p><p>Notem, é um regime muito diferente do regime que foi se constituindo a partir de Platão e culmina na ciência moderna. A forma geral desta "vontade de verdade" é outra. Nela, há um deslocamento do ato ritualizado de enunciação para o próprio enunciado: não importa quem afirma algo, mas se tal afirmação resulta de uma certa racionalidade intrínseca ao enunciado. </p><p>Esse regime moderno de verdade faz parte de uma outra maquinaria de poder, a qual naturaliza uma racionalidade que, longe de ser neutra e imanente, é culturalmente contingente e exclui, interdita e separa outros discursos e, como está na moda falar, narrativas. </p><p>Daí talvez a insurgência de Bolsonaro e de certas alas conservadoras contra a ciência, um levante que, curiosamente, compartilha com as pautas identitárias de esquerda a reivindicação e a defesa de um lugar de fala próprio. <br /></p><p> </p><p>Notas: </p><p>1) A citação direta a Foucault foi copiada do seu livro <i>A Ordem do Discurso</i>, página 15, 5ª edição da Loyola, de 1999. </p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/11/o-mito-da-neutralidade-mais-uma-vez.html" target="_blank">O mito da neutralidade científica - mais uma vez</a> <br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-16362595783328694232020-10-17T03:40:00.005-07:002020-11-15T04:29:20.007-08:00Zen e verdade em Foucault<p>Há um zen em Foucault, que, de certa forma, é o zen dos estudos do discurso do século XX para cá.</p><p>Os mestres zen nos alertam contra maya, o mundo ilusório que criamos por meio de nossos conceitos e de nossas palavras, o qual confundimos com a realidade - de um outro modo, é a mesma advertência que Cristo prega nos evangelhos, escandalizando aqueles que, desde a sua época, se apegam à letra da lei.</p><p>Foucault, por sua vez, se propõe a colocar a verdade do discurso contra o discurso verdadeiro, isto é, voltar à questão que, a partir de Platão, o Ocidente abandonou, a esta questão que seria tão cara a um mestre zen: perguntar o que é o discurso, o que ele faz, como ele cria, historicamente, os vários regimes de verdade - e não, como queria o filósofo grego, quais são as condições universais de um discurso verdadeiro.</p><p>A questão de Foucault, que também é a questão do zen, quando encarada seriamente, abre um amplo espaço de liberdade e de criação, aquele mesmo que Cristo apontou quando disse: "o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado".</p><p>Dito de outra forma: "a palavra foi feita por causa do homem, e não o homem por causa da palavra".</p><p> </p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/09/o-sujeito-e-historia.html" target="_blank">O sujeito e a história</a> <br /></p><p> </p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-14893673368453504122020-09-26T04:00:00.036-07:002020-11-15T03:08:42.344-08:00Gênero do discurso como ritual<p>O que é colocado em jogo num diálogo vai muito além da gramática e do dicionário.</p><p>Quando compreendemos isso, a nossa capacidade de nos situarmos numa conversa, numa leitura ou num processo social qualquer, se enriquece muito.</p><p>O enunciado é concreto, diria Bakhtin, o seu sentido depende do contexto - e não vamos confundir isso com o co-texto, pois os discursos carregam em si, além das palavras, todo um feixe de relações sociais, valores, crenças e códigos que não são pronunciados nem escritos em lugar nenhum, mas que a comunidade/sociedade conhece muito bem.</p><p>A propósito, Foucault foi muito feliz ao falar em "ritual de discurso", e não em "enunciado concreto" ou "gênero do discurso" como o bom e velho Bakhtin, embora, a meu ver, esses conceitos sejam bastante afins.</p><p>Pois é disso que se trata, um ritual, não apenas de palavras e frases, mas de formas socioculturais, de história.</p><p> </p>
<p>Notas:</p><p>1) Sobre gêneros do discurso, recomendo o livro homônimo de Mikhail Bakhtin.</p><p>2) A expressão "ritual de discurso" aparece em <i>História da Sexualidade I - A vontade de Saber</i>, de Michel Foucault.</p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-45973220915646762662020-09-12T04:38:00.009-07:002020-11-15T04:31:22.677-08:00O fim do homem na era da inteligência artificial<p>Quando Foucault escreveu que o Homem estava prestes a desaparecer do horizonte das ciências humanas e o puro discurso era o que lhes restaria como objeto de estudo, ele não imaginava, até onde sei, que sua previsão se cumpriria numa ciência muito diferente: a ciência da computação.</p><p>Pois bem, neste campo, o desenvolvimento da inteligência artificial só deslanchou a partir do momento em que os cientistas desistiram de descobrir como funciona a inteligência humana de fato - o Homem desapareceu do seu horizonte.</p><p>Eles deixaram de tentar reproduzir a sua essência, que jamais encontravam, para construir sistemas que, por meios que nada têm de biologicamente humanos, conseguem ainda assim se comportar inteligentemente.</p><p>A era do puro discurso pode não ter chegado, mas a era da pura inteligência parece ter começado.</p><p>E eu não estou usando a palavra pura porque tal inteligência seja superior ou perfeita, muito menos desejável. Não se trata de um juízo de valor.</p><p> </p><p>Notas:</p><p>1) a tese de Foucault mencionada aqui pode ser lida no seu livro <i>As Palavras e as Coisas</i>.</p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-66731615184320115592020-09-05T04:44:00.001-07:002020-11-15T03:47:07.311-08:00O sujeito e a história<p>Suponhamos que o sujeito não consiga ter clareza das suas emoções e dos seus pensamentos até que lhes dê um nome e conte uma história sobre eles, nem que seja para si mesmo somente, em silêncio.</p><p>Suponhamos que as palavras em geral não apontem para as coisas em si, mas para outras palavras, que as definem.</p><p>Suponhamos que o sentido das palavras esteja inextricavelmente ligado ao contexto social & cultural em que são ditas, tanto o mais imediato quanto o mais distante.</p><p>Suponhamos que o contexto social & cultural jamais permaneça o mesmo no tempo e no espaço.</p><p>O que o sujeito pode dizer de verdadeiro a respeito de si mesmo, da vida e dos livros?</p><p>O que pode dizer que não seja tão passageiro quanto a história?</p><p><br /></p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/11/teste.html" target="_blank">O sujeito da linguagem</a> <br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7586085869660183799.post-52477911893746652482020-07-26T04:54:00.001-07:002020-11-15T03:58:58.321-08:00O trabalho da liberdade em Foucault<p>Foucault não é citado no <a href="https://www.vox.com/policy-and-politics/2020/7/22/21325942/free-speech-harpers-letter-bari-weiss-andrew-sullivan" target="_blank">artigo de Zack Beauchamp na Vox</a>, mas o texto ecoa o pensamento do filósofo francês. O que ele diria a respeito? </p><p>Que não há normas "boas" ou "más", que todas as normas sociais nos oprimem, mas também nos empoderam. </p><p>Ele diria ainda que a nossa liberdade depende da prática da crítica, uma prática que consiste em investigar os processos que moldaram o nosso modo de ser, e então tomar medidas a respeito.</p><p>Para Foucault, liberdade é aquilo que conseguimos fazer de nós mesmos em um contexto histórico específico.</p><p> </p><p>Leia também: <a href="https://hebersales.blogspot.com/2020/09/o-sujeito-e-historia.html" target="_blank">O sujeito e a história</a> <br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0