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Os usos da verdade na política

A coragem da verdade e da "fala franca" ( parresía ) foi o tema dos dois últimos cursos dados por Foucault no Collège de France entre 1982 e 1984. Alguns breves comentários a respeito podem iluminar, eu suponho, certas referências à verdade na política brasileira atual. No primeiro desses cursos, O Governo de Si e dos Outros (FOUCAULT, 2010), o filósofo francês analisa como, em vários textos da Grécia antiga, a palavra parresía passou por uma transformação, deixando de significar o mero direito de se dirigir livremente à assembleia de concidadãos para, nos discursos de Sócrates, se constituir em uma parresía filosófica. Qual era a diferença? Grosso modo, no primeiro caso, que Foucault chamou de parresía pericliana, a fala franca apela à retórica para, em uma acirrada disputa entre oradores e líderes, convencer a cidade a se unir sob uma só ideia. "[Na] situação conflitual em que pessoas pertencentes à elite ou que querem jogar o jogo agonístico se deparam c

O saber dos dados e a nova ciência da ordem

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  A ciência de dados tem se tornado uma disciplina dominante, sendo aplicada nas mais diversas áreas do conhecimento, inclusive nas ciência sociais e humanas. Ela serve de base também para a inteligência artificial, que muitos veem como uma ameaça à hegemonia humana no trabalho, na gestão e do juízo. A onipresença da ciência de dados hoje faz dessa disciplina uma candidata a ciência universal. Podemos falar da datificação como uma nova epistémê ou, para usar termos mais populares, um novo paradigma científico dominante? De certo modo, ela parece-me comparável à epistémê clássica dos século XVII e XVIII, que, segundo Foucault ,  baseava-se em uma "ciência universal da ordem". A ciência da ordem era, como a ciência de dados é hoje, uma ciência da comparação. Na epistémê clássica, as coisas do mundo eram postas em série com base num jogo de identidades, diferenças e gradações. A linguagem era neutra, transparente, servindo apenas como um instrumento de representação da ordem

O mito da neutralidade científica - mais uma vez

O mito da neutralidade científica é renovado pela enésima vez na coluna do Henrique Gomes , que não deixa de ser brilhante em vários aspectos. Ao invés de "suprimir o seu lado pessoal", porém, parece-me mais válido e produtivo "reconhecer o seu lado pessoal" na pesquisa. É a melhor vacina contra vieses, penso eu, e, ao mesmo tempo, fortalece o compromisso do cientista com os valores que passarem ilesos por essa autocrítica. Uma ciência isenta de valores, eu duvido que exista - nem me parece desejável se queremos uma ciência que seja também ética, e não apenas verdadeira.   Leia também: O lugar de fala de Bolsonaro contra a ciência

Tornar-se outro

“Que fazer para ser outra pessoa? Impossível. Seria preciso já não sermos ninguém, esquecermo-nos por alguém, uma vez pelo menos.”  Albert Camus em A queda   Cada um de nós, a todo momento, quer se tornar um pouco outro. Talvez seja impossível haver alguém que, agora mesmo, não deseje mudar alguma coisa em si - geralmente um bocado de coisa.  A própria natureza realiza a transformação, muitas vezes à nossa revelia. A partir de uma certa idade, é inevitável envelhecer a contragosto.  Antes, muito antes disso, as crianças costumam reclamar porque não são grandes o suficiente para fazerem tudo o que querem. Iludem-se, sabemos bem, vão continuar querendo e não podendo o resto da vida. E não podendo até mais. Porém, tudo o que elas percebem agora é que os adultos proíbem-nas de fazer as coisas que eles próprios fazem, e se gabam de fazer.  Uma vez ou outra, a gente encontra um desses guris que não desejam crescer. Parece satisfeito em ser o que é.  Muito mais comum é o adulto que gostaria d

A ordem do mundo e a baderna da linguagem

Segundo uma certa tradição, que tem a sua versão bíblica e, paralelamente, a sua versão científica, usamos a linguagem para lidar com o caos e organizar o mundo. De algum tempo para cá, comecei a me perguntar se o que ocorre não é exatamente o contrário: o mundo está em ordem; a linguagem é que não está - e que é pelo abuso dela que vamos transformando o mundo numa tremenda confusão. Talvez Foucault estivesse se referindo a essa baderna quando escreveu sobre os poderes e os perigos do discurso , esmiuçando então os procedimentos que usamos para por em ordem a nossa própria Torre de Babel. Nós recorremos às palavras para organizar a realidade a nossa volta. Temos uma certa preferência por aquelas que, aos pares, se opõe com clareza uma à outra conforme certos esquemas narrativos. Foi o que nos ensinaram os estruturalistas, desde Saussure, o linguista, à Greimas, o semioticista. A luz está para as trevas, diriam, assim como: o dia está para a noite; o bem está para o mal; e Deus está par

A ordem da balbúrdia nas mídias sociais

O que dizemos tem consequências. O cuidado com que geralmente escolhemos as palavras é uma evidência disso. Nenhum enunciado deixa de receber a sua recompensa ou a sua punição, por irrisórias que sejam, sabemos disso muito bem. "Cuidado com o que você fala" é o nosso décimo primeiro mandamento. Devido aos seus poderes e perigos, o discurso têm sido regulado de várias maneiras ao longo da história. Na nossa sociedade, por volta de 1970, alguns procedimentos de controle dos discursos pareciam patentes para Michel Foucault. Ele procurou então fazer um inventário deles no livro A Ordem do Discurso . Gosto de especular como essas instâncias de controle estariam funcionando hoje, momento em que assistimos a uma proliferação aparentemente incontrolável dos discursos nas mídias sociais. Para ser mais exato, esse processo teria atingido o seu ápice entre 2016 e 2018, período em que uma série de presidentes se elegeram em vários países graças ao modo como produziram e espalharam fake n

O sujeito da linguagem

Por que, dentre todos os enunciados que uma língua nos permite produzir em um certo momento, apenas um é de fato enunciado? O que produz esse acontecimento singular?  Essa questão, debatida por Foucault em livros como A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso , é também central para mim aqui. Retomo-a sempre, seja como um norte dá algum rumo para os meus estudos, seja como um quadro em que organizo as figuras que coloco em cena nos meus textos.  O filósofo francês entende esse acontecimento do enunciado enunciado como um produto da história , parte de uma formação discursiva, governado por procedimentos de controle dos discursos. No que se refere à criação de enunciados, a liberdade do falante seria bastante relativa portanto. Até mesmo a produção de verdades pela ciência dependeria menos de um esclarecimento racional do que de um saber historicamente constituído, isto é, de um conjunto de valores, crenças e premissas que são da dimensão do social-cultural-político. Talvez quanto a