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Mostrando postagens de 2020

O saber dos dados e a nova ciência da ordem

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  A ciência de dados tem se tornado uma disciplina dominante, sendo aplicada nas mais diversas áreas do conhecimento, inclusive nas ciência sociais e humanas. Ela serve de base também para a inteligência artificial, que muitos veem como uma ameaça à hegemonia humana no trabalho, na gestão e do juízo. A onipresença da ciência de dados hoje faz dessa disciplina uma candidata a ciência universal. Podemos falar da datificação como uma nova epistémê ou, para usar termos mais populares, um novo paradigma científico dominante? De certo modo, ela parece-me comparável à epistémê clássica dos século XVII e XVIII, que, segundo Foucault ,  baseava-se em uma "ciência universal da ordem". A ciência da ordem era, como a ciência de dados é hoje, uma ciência da comparação. Na epistémê clássica, as coisas do mundo eram postas em série com base num jogo de identidades, diferenças e gradações. A linguagem era neutra, transparente, servindo apenas como um instrumento de representação da ordem

O mito da neutralidade científica - mais uma vez

O mito da neutralidade científica é renovado pela enésima vez na coluna do Henrique Gomes , que não deixa de ser brilhante em vários aspectos. Ao invés de "suprimir o seu lado pessoal", porém, parece-me mais válido e produtivo "reconhecer o seu lado pessoal" na pesquisa. É a melhor vacina contra vieses, penso eu, e, ao mesmo tempo, fortalece o compromisso do cientista com os valores que passarem ilesos por essa autocrítica. Uma ciência isenta de valores, eu duvido que exista - nem me parece desejável se queremos uma ciência que seja também ética, e não apenas verdadeira.   Leia também: O lugar de fala de Bolsonaro contra a ciência

Tornar-se outro

“Que fazer para ser outra pessoa? Impossível. Seria preciso já não sermos ninguém, esquecermo-nos por alguém, uma vez pelo menos.”  Albert Camus em A queda   Cada um de nós, a todo momento, quer se tornar um pouco outro. Talvez seja impossível haver alguém que, agora mesmo, não deseje mudar alguma coisa em si - geralmente um bocado de coisa.  A própria natureza realiza a transformação, muitas vezes à nossa revelia. A partir de uma certa idade, é inevitável envelhecer a contragosto.  Antes, muito antes disso, as crianças costumam reclamar porque não são grandes o suficiente para fazerem tudo o que querem. Iludem-se, sabemos bem, vão continuar querendo e não podendo o resto da vida. E não podendo até mais. Porém, tudo o que elas percebem agora é que os adultos proíbem-nas de fazer as coisas que eles próprios fazem, e se gabam de fazer.  Uma vez ou outra, a gente encontra um desses guris que não desejam crescer. Parece satisfeito em ser o que é.  Muito mais comum é o adulto que gostaria d

A ordem do mundo e a baderna da linguagem

Segundo uma certa tradição, que tem a sua versão bíblica e, paralelamente, a sua versão científica, usamos a linguagem para lidar com o caos e organizar o mundo. De algum tempo para cá, comecei a me perguntar se o que ocorre não é exatamente o contrário: o mundo está em ordem; a linguagem é que não está - e que é pelo abuso dela que vamos transformando o mundo numa tremenda confusão. Talvez Foucault estivesse se referindo a essa baderna quando escreveu sobre os poderes e os perigos do discurso , esmiuçando então os procedimentos que usamos para por em ordem a nossa própria Torre de Babel. Nós recorremos às palavras para organizar a realidade a nossa volta. Temos uma certa preferência por aquelas que, aos pares, se opõe com clareza uma à outra conforme certos esquemas narrativos. Foi o que nos ensinaram os estruturalistas, desde Saussure, o linguista, à Greimas, o semioticista. A luz está para as trevas, diriam, assim como: o dia está para a noite; o bem está para o mal; e Deus está par

A ordem da balbúrdia nas mídias sociais

O que dizemos tem consequências. O cuidado com que geralmente escolhemos as palavras é uma evidência disso. Nenhum enunciado deixa de receber a sua recompensa ou a sua punição, por irrisórias que sejam, sabemos disso muito bem. "Cuidado com o que você fala" é o nosso décimo primeiro mandamento. Devido aos seus poderes e perigos, o discurso têm sido regulado de várias maneiras ao longo da história. Na nossa sociedade, por volta de 1970, alguns procedimentos de controle dos discursos pareciam patentes para Michel Foucault. Ele procurou então fazer um inventário deles no livro A Ordem do Discurso . Gosto de especular como essas instâncias de controle estariam funcionando hoje, momento em que assistimos a uma proliferação aparentemente incontrolável dos discursos nas mídias sociais. Para ser mais exato, esse processo teria atingido o seu ápice entre 2016 e 2018, período em que uma série de presidentes se elegeram em vários países graças ao modo como produziram e espalharam fake n

O sujeito da linguagem

Por que, dentre todos os enunciados que uma língua nos permite produzir em um certo momento, apenas um é de fato enunciado? O que produz esse acontecimento singular?  Essa questão, debatida por Foucault em livros como A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso , é também central para mim aqui. Retomo-a sempre, seja como um norte dá algum rumo para os meus estudos, seja como um quadro em que organizo as figuras que coloco em cena nos meus textos.  O filósofo francês entende esse acontecimento do enunciado enunciado como um produto da história , parte de uma formação discursiva, governado por procedimentos de controle dos discursos. No que se refere à criação de enunciados, a liberdade do falante seria bastante relativa portanto. Até mesmo a produção de verdades pela ciência dependeria menos de um esclarecimento racional do que de um saber historicamente constituído, isto é, de um conjunto de valores, crenças e premissas que são da dimensão do social-cultural-político. Talvez quanto a

O lugar de fala de Bolsonaro contra a ciência

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, pode cometer os piores pecados e, ainda assim, haverá párocos saindo em sua defesa.  O que está em jogo aí não é a moralidade e a salvação das almas, mas dois regimes de verdade antagônicos.  Em Bolsonaro, há um retorno a um regime que vem de longe e nunca deixou de existir, mesmo que, na maior parte do nosso tempo, tenha subsistido no subterrâneo, nos grotões e nas capelas.  Que regime é esse? É aquele que define como discurso verdadeiro o discurso que é "pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido", diria Foucault: não importa tanto o é que dito, mas quem o diz. É o regime em que se encontra Trump também, como sugere Luiz Felipe Pondé ao classificar o presidente norte-americano como um político pós-moderno . Notem, é um regime muito diferente do regime que foi se constituindo a partir de Platão e culmina na ciência moderna. A forma geral desta "vontade de verdade" é outra. Nela, há um deslocamento do ato rit

Zen e verdade em Foucault

Há um zen em Foucault, que, de certa forma, é o zen dos estudos do discurso do século XX para cá. Os mestres zen nos alertam contra maya, o mundo ilusório que criamos por meio de nossos conceitos e de nossas palavras, o qual confundimos com a realidade - de um outro modo, é a mesma advertência que Cristo prega nos evangelhos, escandalizando aqueles que, desde a sua época, se apegam à letra da lei. Foucault, por sua vez, se propõe a colocar a verdade do discurso contra o discurso verdadeiro, isto é, voltar à questão que, a partir de Platão, o Ocidente abandonou, a esta questão que seria tão cara a um mestre zen: perguntar o que é o discurso, o que ele faz, como ele cria, historicamente, os vários regimes de verdade - e não, como queria o filósofo grego, quais são as condições universais de um discurso verdadeiro. A questão de Foucault, que também é a questão do zen, quando encarada seriamente, abre um amplo espaço de liberdade e de criação, aquele mesmo que Cristo apontou quando disse:

Gênero do discurso como ritual

O que é colocado em jogo num diálogo vai muito além da gramática e do dicionário. Quando compreendemos isso, a nossa capacidade de nos situarmos numa conversa, numa leitura ou num processo social qualquer, se enriquece muito. O enunciado é concreto, diria Bakhtin, o seu sentido depende do contexto - e não vamos confundir isso com o co-texto, pois os discursos carregam em si, além das palavras, todo um feixe de relações sociais, valores, crenças e códigos que não são pronunciados nem escritos em lugar nenhum, mas que a comunidade/sociedade conhece muito bem. A propósito, Foucault foi muito feliz ao falar em "ritual de discurso", e não em "enunciado concreto" ou "gênero do discurso" como o bom e velho Bakhtin, embora, a meu ver, esses conceitos sejam bastante afins. Pois é disso que se trata, um ritual, não apenas de palavras e frases, mas de formas socioculturais, de história.   Notas: 1) Sobre gêneros do discurso, recomendo o livro homônimo de Mikhail Bak

O fim do homem na era da inteligência artificial

Quando Foucault escreveu que o Homem estava prestes a desaparecer do horizonte das ciências humanas e o puro discurso era o que lhes restaria como objeto de estudo, ele não imaginava, até onde sei, que sua previsão se cumpriria numa ciência muito diferente: a ciência da computação. Pois bem, neste campo, o desenvolvimento da inteligência artificial só deslanchou a partir do momento em que os cientistas desistiram de descobrir como funciona a inteligência humana de fato - o Homem desapareceu do seu horizonte. Eles deixaram de tentar reproduzir a sua essência, que jamais encontravam, para construir sistemas que, por meios que nada têm de biologicamente humanos, conseguem ainda assim se comportar inteligentemente. A era do puro discurso pode não ter chegado, mas a era da pura inteligência parece ter começado. E eu não estou usando a palavra pura porque tal inteligência seja superior ou perfeita, muito menos desejável. Não se trata de um juízo de valor.   Notas: 1) a tese de Foucault menci

O sujeito e a história

Suponhamos que o sujeito não consiga ter clareza das suas emoções e dos seus pensamentos até que lhes dê um nome e conte uma história sobre eles, nem que seja para si mesmo somente, em silêncio. Suponhamos que as palavras em geral não apontem para as coisas em si, mas para outras palavras, que as definem. Suponhamos que o sentido das palavras esteja inextricavelmente ligado ao contexto social & cultural em que são ditas, tanto o mais imediato quanto o mais distante. Suponhamos que o contexto social & cultural jamais permaneça o mesmo no tempo e no espaço. O que o sujeito pode dizer de verdadeiro a respeito de si mesmo, da vida e dos livros? O que pode dizer que não seja tão passageiro quanto a história? Leia também: O sujeito da linguagem

O trabalho da liberdade em Foucault

Foucault não é citado no artigo de Zack Beauchamp na Vox , mas o texto ecoa o pensamento do filósofo francês. O que ele diria a respeito?  Que não há normas "boas" ou "más", que todas as normas sociais nos oprimem, mas também nos empoderam.  Ele diria ainda que a nossa liberdade depende da prática da crítica, uma prática que consiste em investigar os processos que moldaram o nosso modo de ser, e então tomar medidas a respeito. Para Foucault, liberdade é aquilo que conseguimos fazer de nós mesmos em um contexto histórico específico.   Leia também: O sujeito e a história