A ordem do mundo e a baderna da linguagem
Segundo uma certa tradição, que tem a sua versão bíblica e, paralelamente, a sua versão científica, usamos a linguagem para lidar com o caos e organizar o mundo.
De algum tempo para cá, comecei a me perguntar se o que ocorre não é exatamente o contrário: o mundo está em ordem; a linguagem é que não está - e que é pelo abuso dela que vamos transformando o mundo numa tremenda confusão.
Talvez Foucault estivesse se referindo a essa baderna quando escreveu sobre os poderes e os perigos do discurso, esmiuçando então os procedimentos que usamos para por em ordem a nossa própria Torre de Babel.
Nós recorremos às palavras para organizar a realidade a nossa volta. Temos uma certa preferência por aquelas que, aos pares, se opõe com clareza uma à outra conforme certos esquemas narrativos. Foi o que nos ensinaram os estruturalistas, desde Saussure, o linguista, à Greimas, o semioticista.
A luz está para as trevas, diriam, assim como: o dia está para a noite; o bem está para o mal; e Deus está para o Diabo. Negar a luz é meio caminho andado até as trevas; e, perdoe-me a rima toante, vice-versa.
Como se vê, a ideia da polarização tem uma uma longa e respeitável história científica, que se desenrola desde o século XIX; não surgiu em nossa época de guerras ideológicas nas redes portanto. Como literatura, é ainda mais antiga. A Bíblia está aí para prová-la.
Recorrer à linguagem para organizar o mundo é, todavia, um projeto arriscado. O sentido das palavras costuma ser fugidio, variando indefinidamente de acordo com os inúmeros contextos em que as usamos, tanto os mais imediatos quanto os mais distantes, diria Bakhtin.
E aí pode estar a origem de toda confusão em que nos metemos quando nos tornamos palavrosos. Não é raro nos perdermos na tradução, seja em conversas com um estrangeiro, seja num papo com o vizinho.
O gringo talvez não entenda como, diante de um lance bisonho, o narrador de um jogo de futebol possa usar a palavra bonito, quando devia falar feio - "muito bonito, isso!".
O meu vizinho sumamente cristão, se um dia ler este texto, talvez me descubra ateu porque incluí a Bíblia no cânone literário, apesar de eu rezar a Oração de Jesus algumas vezes por dia, sempre para mim mesmo apenas, em silêncio.
Se não fosse por tantas confusões assim, desconfio, o mundo estaria em perfeita ordem. Quem faz uma grande baderna é a linguagem.
Notas:
1) Para Bakhtin, a baderna da linguagem é um dado positivo e produtivo, pois, graças à diversidade de linguagens sociais que a constituem, uma língua se torna mais rica;
2) A propósito, recomendo a leitura do seu livro Os Gêneros do Discurso para quem deseja conhecer melhor as suas ideias sobre polifonia e dialogismo;
3) Do Foucault, o bom e velho A Ordem do Discurso é a melhor introdução sobre como, no Ocidente moderno, lidamos com os poderes e perigos do discurso.
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