A ordem da balbúrdia nas mídias sociais

O que dizemos tem consequências. O cuidado com que geralmente escolhemos as palavras é uma evidência disso. Nenhum enunciado deixa de receber a sua recompensa ou a sua punição, por irrisórias que sejam, sabemos disso muito bem. "Cuidado com o que você fala" é o nosso décimo primeiro mandamento.

Devido aos seus poderes e perigos, o discurso têm sido regulado de várias maneiras ao longo da história. Na nossa sociedade, por volta de 1970, alguns procedimentos de controle dos discursos pareciam patentes para Michel Foucault. Ele procurou então fazer um inventário deles no livro A Ordem do Discurso.

Gosto de especular como essas instâncias de controle estariam funcionando hoje, momento em que assistimos a uma proliferação aparentemente incontrolável dos discursos nas mídias sociais.

Para ser mais exato, esse processo teria atingido o seu ápice entre 2016 e 2018, período em que uma série de presidentes se elegeram em vários países graças ao modo como produziram e espalharam fake news e discursos de ódio nas mídias sociais, utilizando técnicas  de manipulação baseadas no acesso e no uso não autorizados dos dados pessoais dos usuários dessas plataformas - é o que alegam os adversários dos presidentes incorrigíveis, alertando-nos para o modo como o modus operandi deles arruína a democracia e a civilização. Do alto de sua arrogância e da sua prepotência, líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro comandam brigadas digitais que assediam, caluniam e intimidam os oponentes e os traidores da causa, argumentam.

A guerra de narrativas entre os dois lados produz uma tremenda balbúrdia, que, no entanto, não surge nem se expande livremente se Foucault estiver certo. E não é porque haja desde 2016 um imenso esforço institucional para blindar a internet contra a mentira, a violência e a invasão de privacidade. A enxurrada diária de enunciados político-ideológicos nas redes sociais vem sendo organizada desde muito antes de 2016 pelo que o filósofo francês chamou de doutrinas.

Enquanto procedimentos de controle dos discursos, como operam as doutrinas? 

Um grupo de indivíduos compartilha um certo conjunto de discursos que lhes serve de sinal de pertença. Se, muitas vezes, há mera pregação para convertidos, o que caracteriza uma doutrina é a sua natureza propagandística: a doutrina expande-se indefinidamente, convertendo infiéis, indecisos e indiferentes.

As figuras que uso aqui são as de um tema religioso, porém as doutrinas prosperam nas mais diversas esferas da nossa vida social. Há doutrinas e doutrinação no esporte, na arte, na ciência e, evidentemente, na política.

O indivíduo doutrinado sofre, como falante, uma dupla sujeição: ele é interrogado "através e a partir do enunciado" que enuncia, o qual, por sua vez, é avaliado enquanto "manifestação de uma pertença prévia". No âmbito das doutrinas - recorro mais uma vez a um símile religioso -, a enunciação equivale portanto a uma profissão de fé. 


Notas:

1)  As citações diretas são do livro A Ordem do Discurso, de Michel Foucault, e podem ser encontradas nas páginas 42 e 43 da 5ª edição da Loyola, de 1999.

2)  A análise de Wendy Brown sobre o suporte a Trump nas eleições de 2020 descreve claramente uma doutrina.

3)  A doutrina regula a proliferação dos discursos contra o Trump também, não se engane.

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